O ministro Joaquim Barbosa, eleito ontem presidente do Supremo Tribunal Federal, mistura sentimentos quando o assunto é a cor da sua pele. Primeiro, ele repele veementemente a afirmação de que chegou à Corte por ser negro. E não usa a condição racial como propulsão de sua carreira. Costuma dizer que ele é produto de si mesmo, resultado de seus estudos, esforços e trabalho. Um adepto incondicional da meritocracia. Talvez por isso não fosse o candidato preferido em 2003 de representantes do movimento negro.
Por outro lado, exibe orgulho por ser negro, um sentimento sem nenhum indício de autocomiseração. À véspera de ser eleito presidente do STF, fez piada com o nome do time em que jogava em Paracatu (MG) quando era criança, "os bocas pretas". E afirma aos memorialistas do tribunal: "Negro, eu sou o primeiro".
"Nós constituímos a maioria da população. É um fato extraordinário pela primeira vez ter-se alguém na presidência do Poder Judiciário", disse ontem o ministro, que assumirá o posto em novembro, em data a ser confirmada depois da aposentadoria do colega Carlos Ayres Britto, que completará 70 anos no dia 18 daquele mês.
Sem nenhuma dúvida, Barbosa é o primeiro presidente negro a comandar a cúpula do Judiciário. Pedro Lessa, nomeado ministro em 1907, era "um mulato claro", na discrição da principal historiadora do STF, Lêda Boechat, e não chegou à presidência da Corte. Hermenegildo Barros, que chegou ao tribunal em 1919, era um "mulato escuro", também nas palavras da historiadora, e igualmente não pôde presidir o tribunal.
Lessa foi alvo de comentários preconceituosos na Corte, alvejado pelo colega e futuro presidente da República Epitácio Pessoa. Preconceito racial que Barbosa denuncia e do qual diz ter sido vítima em sua carreira. No passado, estava bem classificado no exame para o Instituto Rio Branco, mas foi reprovado na fase de entrevista. Poliglota, tem a certeza de que foi excluído por ser negro.
Sua história, mesmo nunca tendo sido beneficiado por alguma espécie de cota racial, levou-o a estudar e defender políticas afirmativas. Mas não abandona a meritocracia com isso. Seria uma alternativa ao que considera uma exclusão dos negros, um fechar de portas em função da cor da pele.
Ao mesmo tempo, não faz disso um discurso monocórdio. Ao contrário. Depois de nomeado e empossado, passou a receber convites frequentes em razão da cor de sua pele. Eram prêmios oferecidos pelo movimento negro, homenagens ou conferências sob a questão racial. Convites que também eram seguidamente negados por Barbosa. O ministro não queria virar refém desse tema, muito menos ser imediatamente atrelado ao assunto.
Currículo certo. A indicação de Joaquim Barbosa foi uma combinação de fatores. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva instruiu o ministro Márcio Thomaz Bastos a buscar o nome de um negro para integrar a Corte. Dezenas de currículos foram encaminhados ao Ministério da Justiça. Nenhum dos candidatos tinha perfil para a vaga.
Nessa época, Barbosa vivia nos Estados Unidos e, numa passagem de alguns dias de descanso no Brasil, encontrou Frei Betto no aeroporto. Os dois se conheciam de organizações não governamentais em que atuaram. Trocaram telefones. Frei Betto levou seu nome ao governo. Já de volta aos Estados Unidos, Barbosa recebeu um e-mail com o convite para uma conversa com Thomaz Bastos. Veio ao Brasil com o sentimento de que essa viagem seria um retorno definitivo ao País.
O currículo de Joaquim Barbosa foi um achado. E não pela simples comparação com os demais nomes que chegavam ao governo naquele momento. A carreira acadêmica era invejável. Doutor e mestre em Direito Público pela Universidade de Paris-II (Panthéon-Assas), especialista em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), professor licenciado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), além de ter estudado em três renomadas universidades nos Estados Unidos - Columbia, Nova York e Califórnia. Fluente em inglês, francês e alemão.
Além disso, sua carreira profissional era igualmente suficiente para qualificá-lo para a vaga no Supremo. Foi membro do Ministério Público Federal por 19 anos, chefe da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, advogado do Serpro e oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores. De posse do currículo, bastou ao governo bater o martelo.
Nascido na mineira Paracatu, estudou sempre em escola pública, filho de um pedreiro e uma faxineira. História de vida que também não o faz bater bumbo. Certa vez, um integrante do governo tentou uma aproximação lembrando das origens do ministro. Logo foi interrompido por Barbosa: "Isso é passado".
São-paulino, admirador de jazz e leitor voraz (lê mais em francês e inglês do que em português), Barbosa troca Brasília pelo Rio com frequência. Mantém lá um apartamento e visita o filho único com frequência. Nas férias, costuma escolher entre Europa e Estados Unidos. Sabe de cabeça, por exemplo, os endereços das melhores livrarias de Paris.
Nos próximos dois anos, presidirá o STF e o Conselho Nacional de Justiça. Sua principal preocupação é garantir às partes de um processo a igualdade de armas. Por isso, critica o comportamento de magistrados que recebem advogados a portas fechadas ou de advogados que se aproveitam de parentesco com ministros para obter vantagens.
Para colegas da Corte, a presidência de Barbosa é uma incógnita. "Como vai se relacionar com os advogados e com os juízes?", pergunta um dos ministros do Supremo. Mas são os embates do passado em plenário que geram as principais dúvidas. Barbosa já discutiu no passado com o então ministro Eros Grau (a quem chamou de "velho patético"), com Gilmar Mendes (de quem disse não ser um de seus "capangas em Mato Grosso") e com Cezar Peluso (a quem chamou de "corporativo, tirano, desleal e brega").
Durante o julgamento em curso do mensalão, travou embates com Marco Aurélio Mello (afirmou que o colega só chegou ao tribunal por ser primo do ex-presidente Fernando Collor) e com o revisor do processo, ministro Ricardo Lewandowski (ao colega, seu vice-presidente, disse que não podia fazer vista grossa às provas). Recentemente, afirmou em tom contemporizador que o presidente do STF é um coordenador de iguais.
Tradição. Na sessão de ontem que referendou a escolha de Barbosa, a tradição do Supremo foi seguida à risca. Foi escolhido o ministro mais antigo que ainda não presidiu a Corte, e o escolhido foi o único a não votar em seu próprio nome. O costume é que o futuro presidente vote no colega que vem em seguida na linha de antiguidade - no caso, Lewandowski.
Nos bastidores da Corte, especialmente no ano passado, havia suspeitas de que Barbosa poderia ser preterido e a ordem desrespeita. Apenas boato.
O respeito à rotatividade foi ontem ressaltado pelo decano do Supremo, Celso de Mello. Em rápido discurso, o ministro disse que Barbosa saberá agir "com sabedoria, prudência e segurança". Lewandowski, por sua vez, afirmou que o papel de vice-presidente "não é o de protagonista, mas o de coadjuvante e colaborador". "Neste sentido, o futuro presidente, ministro Joaquim Barbosa, poderá ter a certeza de que tudo farei para que tenha uma administração plena de êxito, como de fato merece e como o Brasil espera."
Após a sessão, Barbosa assegurou que seu mandato de dois anos não será turbulento. "É uma honra muito grande. Com certeza não haverá turbulências nem grandes inovações."
O vice eleito é Ricardo Lewandowski, ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e com quem Joaquim Barbosa tem divergências públicas.
Fonte: ESTADÃO.com.br
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